19 TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO NA PRÁTICA ECOLÓGICA O BISPO

19 TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO NA PRÁTICA ECOLÓGICA O BISPO
EM BUSCA DE DEUS (TEOLOGIA DA ALEGRIA) A PLENITUDE
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G IGANTE DA TEOLOGIA ENTREVISTA COM GUSTAVO GUTIÉRREZ E
STORIA DELLA TEOLOGIA INTRODUZIONE ALLA MATERIA PRIMA DI COMINCIARE

Teologia da Libertação na prática: D

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Teologia da Libertação na prática ecológica: o bispo e o rio



Pedro A. Ribeiro de Oliveira1

Fábio Adriano de Queiroz2

RESUMO

A polêmica criada em torno ao projeto de transposição das águas do rio São Francisco mostra a luta de grupos sociais que encontraram num líder religioso a sua referência política. Tendo como referencial teórico as contribuições de Max Weber e Pierre Bourdieu para o estudo da figura do profeta, o artigo analisa o papel de D. Luiz Cappio no processo de mobilização social de setores da Igreja, do meio político, dos movimentos sociais e povos que abraçaram a causa da proteção ao rio São Francisco. A análise de documentos favoráveis e contrários a suas duas greves de fome (em 2005 e 2007) permite aprofundar o conhecimento da função profética como decorrência prática da Teologia da Libertação.


Palavras-chave: Profetismo. Igreja. Política. Meio Ambiente. Rio São Francisco.


ABSTRACT


The ongoing controversy that has been stirred up around the Project for the São Francisco river transposition, shows the struggle of social groups that have found their political reference in a religious leader. Having as a referential the contributions made by Max Weber and Pierre Bourdieu for the study of prophecy, the present article analyzes the role played by D. Luiz Cappio in the process of social mobilization of church members, political activists and social movements who have embraced the protection of the river as their cause. The analysis of documents which bear favorable and opposing stances on D. Cappio’s hunger strikes (the first in 2005 and the following in 2007) allows us to acquire a deeper knowledge of the prophetic role as a practical result of the Theology of Liberation.


Keywords: Prophecy. Religion. Politics. Environment. São Francisco river.





Apresentação

O “Projeto de Integração do Rio São Francisco com as Bacias Hidrográficas do Nordeste Setentrional”1, aqui referido pelas denominações correntes de “projeto de transposição” ou “transposição” foi anunciado como a solução definitiva do problema da seca no Nordeste. Elencado entre as principais obras do governo Lula, ele sofreu a inesperada oposição de seu antigo aliado: dom Frei Luiz Flávio Cappio, ofm –conhecido como D. Cappio. Sua luta pela revitalização do rio São Francisco remonta a 1992, quando, ainda padre, formou um pequeno grupo de agentes pastorais para descerem o rio desde a serra da Canastra, em Minas Gerais, até o oceano Atlântico. A viagem tinha por objetivo conhecer os vilarejos ribeirinhos e envolver mais grupos na defesa do rio, e foi marcada por celebrações à beira-rio e na caatinga (CAPPIO, 2000). Naquela época não estava na agenda do governo federal o projeto de transposição, embora a ideia já tivesse sido aventada por D. Pedro II. Foi em 2005 que o então presidente Lula decidiu levar em frente as obras. Em protesto, o bispo fez greve de fome de 11 dias, em Cabrobó - PE, com o propósito de forçar o diálogo entre governo e sociedade sobre a transposição e a revitalização do velho Chico. Tal diálogo, contudo, não ocorreu e as obras foram iniciadas. Foi então que, entre 27 de novembro e 20 de dezembro de 2007, em Sobradinho - BA, D. Cappio se pôs novamente em jejum e oração.

Sua atitude repercutiu por todo o País, tendo suscitado muito debate sobre o projeto de transposição, bem como apoio e críticas a seu gesto. Ao desmaiar em consequência do seu estado de debilidade física, D. Cappio foi levado ao hospital. Convencido de que seria inútil insistir no jejum, retomou suas funções como bispo diocesano de Barra - BA onde continua até hoje. O projeto de transposição continua em andamento, apesar da oposição de amplos setores da sociedade e dos sucessivos atrasos e aumentos no orçamento da obra.

Esta não foi a primeira vez que um bispo católico confrontou uma política do Estado no Brasil, mas teve a peculiaridade do recurso à greve de fome anunciada como “jejum e oração”. Tal gesto surpreendeu muita gente, tanto na Igreja católica quanto no espaço público, pois a inédita proposta de um bispo católico oferecer a própria vida em favor da vida do rio revestiu-se de um simbolismo que ultrapassa o estrito gesto de protesto político. A chave para compreender o significado daquele gesto está no conjunto de cartas, notas, declarações e artigos vindos a público por ocasião das greves de fome 2.

Ao analisar aquele episódio focaremos uma decorrência prática da Teologia da Libertação: sua dimensão profética. Ao tomar a sociologia da religião de inspiração weberiana como guia de análise, pretendemos mostrar como se dá a relação entre religião e política na perspectiva dos Direitos da Terra, que hoje constituem um dos focos daquela Teologia.



Dom Luiz Cappio e a defesa da vida do rio São Francisco

O personagem central dessa análise tem sua biografia marcada pelo espírito de aggiornamento do Concílio Ecumênico de 1962-65, o Vaticano II, e sua recepção latino-americana – a Teologia da Libertação. Nascido em Guaratinguetá, em 1946, entrou para a ordem franciscana onde estudou com o então frei Leonardo Boff, que deu o seguinte depoimento sobre sua trajetória religiosa:



Foi meu aluno de teologia por cinco anos. Sempre trabalhava nas favelas de Petrópolis. Como vocação adulta, vindo de uma família rica de Guaratinguetá, sua opção franciscana era límpida e sem os vícios da formação convencional seminarística. Já na época, o cercava uma aura de santidade pessoal, de extrema simplicidade e pobreza. Era estudante assíduo. Mas até hoje me deve o trabalho final, uma espécie de tese de fim de curso, que todos deviam fazer. Eu insistia que se pusesse a trabalhar. E foi protelando até o último dia, quando foi transferido para São Paulo para trabalhar nas favelas.

Numa Quinta-Feira Santa desapareceu de São Paulo, levando apenas o burel franciscano, a Bíblia e a Regra de São Francisco. De carona com caminhoneiros, foi para onde achava que estavam os pobres: em Barra, na Bahia. O provincial o descobriu apenas dois meses depois. Telefonou-me dizendo: “Devemos ir pegá-lo, pois ficou louco”. Eu lhe respondi: “Provincial, abra Marcos 3, 21 onde se diz: os parentes saíram para pegar Jesus porque diziam: ele está louco”. Acrescentei: “Ele está em excelente companhia, com Jesus e ainda com São Francisco que se chamava a si mesmo de pazzus, que em latim medieval e italiano significa louco. Lógico, louco para certo tipo de ordem deste mundo, não para a ordem do Reino.” (MOREIRA, 2008, p. 23-24).



Embora sua posição contrária à transposição fosse bem conhecida, sua luta pública iniciou-se com a declaração feita no domingo de Páscoa de 2005, em Barra:

1. De livre e espontânea vontade assumo o propósito de entregar minha vida pela vida do Rio São Francisco e de seu povo contra o projeto de transposição, a favor do Projeto de Revitalização.

2. Permanecerei em “greve de fome”, até a morte, caso não haja uma reversão da decisão do Projeto de transposição.

3. A “greve de fome” só será suspensa mediante documento assinado pelo Exmo. Sr. Presidente da República revogando e arquivando o Projeto de Transposição. (VIAN, 2008 p. 18).



Além das divergências técnicas, sociais e ambientais, o bispo acusava o custo do projeto e discordava dos procedimentos do governo, que estava a implantar o projeto sem prévia consulta às populações locais por ele afetadas. Por outro lado, o bispo criticava a fragilidade da sociedade e do processo democrático brasileiro e a ausência de articulação dos movimentos sociais em defesa do meio-ambiente. Tais críticas, porém, não resultaram em mudanças no projeto, e assim no dia 26 de setembro, o bispo se pôs em “jejum e oração” na Capela de São Sebastião, a três quilômetros de Cabrobó, nas terras do povo indígena Truká, local próximo da tomada d’água do eixo norte da transposição. Nesse momento, escreve ao Presidente Lula:



Sempre fui seu admirador. Participei ativamente em todas as campanhas eleitorais do PT, alimentando o sonho de ver o povo no poder. Esperávamos do senhor um apoio maior em favor da vida do rio e do seu povo. Esperávamos que, diante de tantos e consistentes questionamentos de ordem política, ambiental, econômica e jurídica, o governo revisse sua disposição de levar a cabo este projeto que carece de verdade e de transparência.

Quando cessa o entendimento e a razão, a loucura fala mais alto. Em meu gesto não existe nenhuma atitude anti-Lula neste momento delicado da vida nacional. Pelo contrário. Quem sabe seja uma maneira extrema de ajudá-lo a entender pelo coração aquilo que a razão não alcança. (VIAN, 2008, p. 19).



Com essa atitude, esperava que o governo se sensibilizasse, suspendesse a obra e estabelecesse uma discussão mais profunda com toda a sociedade. Muitas caravanas organizadas por movimentos sociais seguiram para Cabrobó para manifestar apoio e adesão à causa levantada pelo bispo. Diante dessa situação, em 29 de setembro o presidente Lula lhe dirige uma carta em que se propõe ao diálogo:



O apelo pessoal ao diálogo que lhe faço, Dom Luiz Flávio, baseia-se na minha responsabilidade de governante, que deve dialogar com uma sociedade múltipla em suas crenças, convicções pessoais e ideologias, tendo como fundamento a vida democrática, com o necessário respeito às decisões das maiorias e aos direitos das minorias. (VIAN, 2008, p. 21).



D. Cappio, porém, insistiu em manter-se em jejum, enquanto não tivesse em mãos um documento assinado pelo Presidente cancelando o projeto de transposição, para posteriormente estabelecer um diálogo e propor alternativas para o São Francisco. Essa atitude causou claro incômodo nos meios políticos e eclesiásticos.

Na Igreja católica, um amplo setor demonstrava apoiar o gesto político do bispo, mas repudiava a greve de fome como meio adequado ao protesto. Outro setor, menos numeroso, considerava sua atitude equivocada, radical, fundamentalista e contrária aos princípios cristãos; além disto, por defender a transposição, posicionou-se claramente contrário ao protesto de D. Cappio e favorável ao projeto do governo federal. Outro setor da Igreja, também minoritário porém bem entrosado, aprovava não somente a causa quanto o meio utilizado por D. Cappio para impedir a transposição, por ser o último recurso. Esse setor articulou-se com diversas organizações, movimentos populares e sociais que abraçavam as mesmas causas políticas e ambientais, como o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), o Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA), os Movimentos dos Atingidos por Barragens (MAB), a Via Campesina, movimentos estudantis, sindicatos, técnicos, intelectuais e artistas.

A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) demonstrou apoio à causa mas não à forma adotada por D. Cappio para defender o rio e sua gente. Assim foi que buscou o diálogo com ele no intento de pôr fim à greve de fome e fazer que prosseguisse sua luta de outro modo.



No momento em que você toma uma decisão de extrema importância em sua vida, queremos assegurar-lhe a presença fraterna de seus irmãos bispos da Presidência e do Conselho Episcopal de Pastoral da CNBB. Sabemos que estamos diante de uma atitude extrema, mas também de grande generosidade. Qualquer que seja o juízo sobre a oportunidade de sua decisão, não é possível deixar de reconhecer a nobreza de seu propósito. Num mundo em favor do povo pobre, tem a marca evangélica de Francisco de Assis no seguimento de Jesus. (VIAN, 2008, p. 27).



Em reforço a essa posição, a CNBB dirigiu carta ao Presidente Lula para solicitar que atendesse o desejo do seu colega no episcopado.



Somos interpelados por este gesto profético, fruto de um discernimento espiritual feito ao longo de anos de convívio com a realidade de pobreza e sofrimento das populações que sobrevivem do Rio São Francisco [...] Senhor presidente, apelamos para que reconsidere a decisão política que, ainda longe de um consenso na região nordestina a respeito da viabilidade e dos resultados socioambientais da transposição do rio São Francisco, divide as mentes e os corações. Esperamos uma atitude sua em favor da unidade do povo nordestino. É preciso intensificar o diálogo capaz de superar as divergências que existem na região e construir um projeto que seja do conjunto da sociedade. (VIAN, 2008, p. 28).



Ao expressar sua admiração pela atitude “generosa”, “franciscana”, “nobre” e “profética”, a CNBB endossava o propósito de luta de D. Cappio embora fizesse restrições à “radicalidade” do meio utilizado por transgredir as normas habituais de comportamento de um bispo. Ela não expressava, contudo, a opinião unânime do episcopado brasileiro. A voz discordante se fez ouvir, imediatamente, pela a Presidência do Regional Nordeste II da CNBB (Alagoas, Paraíba, Pernambuco e Rio Grande do Norte), que divulgou nota onde dizia:



Somos a favor de que o processo de revitalização do rio São Francisco, em toda a sua extensão e complexidade, seja iniciado com a devida urgência, contemplando inclusive as necessidades vitais das populações ribeirinhas.

Queremos reafirmar nossa adesão ao Projeto da captação de águas do Rio São Francisco, para suprir as necessidades de água potável, nas carentes bacias hidrográficas de nossos Estados, de modo especial, Alagoas, Pernambuco, Paraíba, Rio Grande do Norte e Ceará.

Na caridade da Colegialidade Episcopal, por dever de nosso ministério, afirmamos a nossa desaprovação à atitude extrema do nosso irmão Dom Luiz Flávio Cappio, que provocou perplexidade e sofrimento a nós pastores e ao povo de Deus a nós confiado. Agradecemos ao querido irmão pela acolhida aos ensinamentos da doutrina de nossa Igreja Católica, que afirma ninguém ser dono de sua própria vida. Fraternalmente, o temos, bem como a todo o povo do nordeste, em nossas orações. (VIAN, 2008, p. 35-36).



De outra parte, D. Cappio via crescer o apoio que chegava de diversas partes do Brasil. Exemplo significativo desse apoio foi a Assembleia dos Povos do Semiárido, em 4 de outubro, reunindo centenas de pessoas e entidades populares de vários cantos do país. Aumentava também o número de peregrinos que vinham pedir sua bênção e solidarizar-se com sua atitude. Essa participação mesclava discussões políticas, vigílias e missas. Mesmo diante dos pedidos do governo federal e de Roma para a suspensão da greve de fome, em 5 de outubro D. Cappio confirmava a D. Itamar Vian, seu antecessor na diocese e emissário oficial da CNBB, sua decisão de permanecer “em jejum e oração enquanto não chegar em minhas mãos o documento (...) revogando e arquivando o atual Projeto de Transposição”. (VIAN, 2008. p. 32)

A estratégia de D. Cappio tinha o propósito de sensibilizar a sociedade e o governo federal para o debate em profundidade do projeto de transposição, além de fomentar o investimento em obras que revitalizassem o rio São Francisco. Diante da polêmica em nível internacional, Jacques Wagner – ministro chefe da Secretaria de Relações Institucionais – em nome do governo federal escrevia, no mesmo dia 5 de outubro, carta com três promessas:



O Governo Federal assegura que será prolongado o debate em torno do processo de transposição das águas do rio São Francisco, ainda na fase anterior ao início de obras, para o esclarecimento amplo de questões que ainda suscitem dúvidas e divergências. Além disso o Governo Federal dará continuidade e intensificará as obras relativas à revitalização do rio São Francisco. [...] Por fim, o Presidente Lula lhe transmite convite para ser recebido por ele no Palácio do Planalto tão logo o senhor estiver restabelecido, com o objetivo de dialogar sobre o mesmo tema. (VIAN, 2008, p. 37).



Essa proposta do Governo ganhou força devido ao respaldo da Santa Sé, onde a reação foi bem mais dura. Numa carta de 4 de outubro o cardeal Giovanni Battista Re, prefeito da Congregação para os Bispos, advertiu-o sobre seu gesto classificando-o como um atentado à própria vida. Em nome da obediência, D. Cappio devia cancelar imediatamente seu jejum / greve de fome. O cardeal expressa-se nesses termos:



Com referência à sua radical decisão de jejum contra o plano de transposição das águas do Rio São Francisco, reclamando também a sua revitalização, e diante da firme opção de Vossa Excelência de levar até o extremo a greve de fome, tenho o grave dever de recordar-lhe que os princípios da moral cristã não permitem que leve adiante a sua decisão. É necessário conservar a vida, dom de Deus, e a integridade da saúde.

Em nome da Santa Sé, peço firmemente que não prossiga com esse gesto radical. Não é esse o modo aceitável para exprimir a sua solidariedade e sua doação pelo Povo de Deus.

A Santa Sé confia que Vossa Excelência não desobedecerá o preceito divino de não extinguir e prejudicar a sua vida e que imediatamente V. Exa. colocará fim a este gesto em obediência também à Santa Sé. (VIAN, 2008, p. 31).



Ao tomar conhecimento da posição da Santa Sé, o ministro Jacques Wagner viajou com o núncio para Cabrobó, em 6 de outubro. Depois de receber as duas cartas e cinco horas de negociação com o ministro, que em nome do Presidente prometeu estabelecer a ampla discussão sobre o projeto de transposição, D. Cappio decidiu-se pela interrupção do jejum no mesmo dia. Em seguida foi ao encontro do núncio apostólico, que o repreendeu em particular, mas com ele celebrou a missa de ação de graças na Capela de São Sebastião, juntamente com D. Adriano Ciocca – bispo local –, D. Paulo Cardoso da Silva – presidente do Regional Nordeste II – dois outros bispos e muitos sacerdotes, com a presença significativa do povo. Durante a homilia o Núncio destacou que não somos donos mas administradores da vida: “Só Deus é o dono da vida e nós não podemos tirá-la. Segundo a moral católica, o fim não justifica os meios, mesmo que o fim seja uma nobre causa”. Com o “afeto e a Benção Apostólica do Santo Padre”, o Núncio declarou-se satisfeitos “pela feliz conclusão desta vicissitude”. (VIAN, 2008, p. 40).

D. Cappio, em carta aberta intitulada “Vida para todos: por isso fiz a greve de fome”, explicita os motivos de seu gesto:



Foi em favor da vida que fiquei 11 dias em jejum e oração na tão querida capelinha de São Sebastião, em Cabrobó (PE). Motivou-me o compromisso, baseado no Evangelho, que tenho com os pobres, os do rio São Francisco em primeiro lugar, porque me são mais próximos, há mais de 30 anos, por opção de franciscano, sacerdote e bispo desde 1997. Compromisso com a vida do próprio rio São Francisco, tão degradado.

A transposição nos divide. A revitalização do São Francisco e do semiárido nos une. [...] Fico feliz que meu gesto, suas razões e sua “loucura” tenham sido compreendidos e apoiados por tanta gente. Agradeço sinceramente. Tenho rezado por todos. [...] “Eu vim para que todos tenham vida e a tenham em abundância” (João, 10, 10). [...] Fiz dessas palavras centrais do Evangelho meu lema de bispo. Só quis ser fiel a elas, com a radicalidade que a questão exigia. E voltarei ao jejum e à oração, com mais determinação ainda, se o acordo firmado, em confiança, com o governo não for cumprido. E sei que não estarei sozinho. (VIAN, 2008, p. 41-42).





Retomada do protesto e mobilização social

O acordo com o governo federal previa amplo debate com a sociedade brasileira sobre o projeto de transposição, bem como o levantamento de alternativas para o semiárido a partir de uma política de desenvolvimento sustentável. D. Cappio apressou-se em expressar sua posição nos espaços que estivessem a seu alcance: menos de um mês após o termino da greve de fome já participava da 4ª Semana Social Brasileira, em Brasília. Também a CNBB mobilizou-se para o debate e convidou figuras de relevo, a favor e contra o projeto, para justificarem sua posição. O diálogo com governo, porém, não teve continuidade. Quando tudo indicava que alternativas seriam encaminhadas, a situação agravou-se devido à retomada do projeto com novo ímpeto, tendo desta vez o corpo de engenharia do Exército.

No dia 27 de novembro de 2007, sem aviso prévio, D. Cappio entrou novamente em jejum e oração na Capela de São Francisco em Sobradinho, na Bahia. O local era significativo por evocar a violenta expulsão de muitos trabalhadores rurais cujas terras seriam alagadas pela barragem do rio São Francisco. Todos os dias, após a celebração da missa com a comunidade, o bispo se retirava para o interior da capela, onde havia um colchão estendido no chão. Alimentando-se apenas da água do rio e depois com soro caseiro, ele recebia grande quantidade de gente que vinha lhe prestar apoio.

Desta vez a atitude do bispo teve repercussão ainda maior, porque o debate sobre a transposição havia se estendido pelo Brasil e havia divergências entre quem apoiava o “Plano de Aceleração do Crescimento” onde se inseriam as obras da transposição, e quem esperava do governo Lula soluções ecologicamente sustentáveis, como a proposta elaborada pela Agência Nacional de Águas (ANA) e a construção de cisternas da Associação do Semi-Árido (ASA). Nesse contexto, o jejum e oração de D. Cappio motivou vários grupos a promoverem jejuns de solidariedade em outras cidades e a organizarem caravanas de apoio. A mais importante delas foi a romaria a Sobradinho em 9 de dezembro, com cerca de seis mil pessoas e 120 representações de movimentos sociais. Enfim, a TV causava impacto em âmbito nacional ao mostrar o bispo, vestindo o hábito franciscano, a beber água do rio nas próprias mãos.

Desta vez a reação do governo Lula foi mais dura e rápida, pronunciando-se por meio do ministro da Integração Nacional, Geddel Vieira Lima:



Greve de fome como método de pressão política só fez sentido na História em lutas libertárias contra injustiças extremas. (...) Na forma, a greve de fome do Bispo de Barra, Dom Luiz Flávio Cappio, se aproxima da estética dos mártires. No conteúdo, não. Dom Cappio diz protestar contra a transposição e a favor da revitalização do rio São Francisco, o que justificaria seu gesto radical. Mas é um erro banalizar esse instrumento sagrado de luta porque, antes de mais nada, ele exige uma causa nobre ou uma iniquidade de enormes proporções. E isso é tudo o que não é o projeto do governo para o São Francisco. (LIMA, 2007).



Em apoio ao governo, pronunciou-se D. Aldo Pagotto, presidente do Comitê Paraibano pela Integração das Bacias Hidrográficas do Rio São Francisco e arcebispo da Paraíba, em 28 de novembro:



Caro irmão Dom Luiz Flávio Cappio: Deus o ilumine e o proteja. Nossa vida a Deus pertence. (...) Por ocasião de sua primeira greve de fome, a Santa Sé lhe pediu, em carta que lhe foi entregue em mãos pelo Núncio Apostólico no Brasil, que desistisse dessa conduta. Diante da dádiva da vida, peço que você reveja a sua posição quanto à revitalização e à integração das Bacias Hidrográficas do Rio São Francisco, contempladas em uma obra que beneficia a doze milhões de nordestinos dos estados da Paraíba, Ceará, Rio Grande do Norte e Pernambuco. O planejamento técnico-científico e a gestão administrativa e econômica da obra são de competência governamental através dos órgãos específicos. Não compete a nós bispos da Igreja intervir nesse mérito. Contudo, nós bispos e o povo da Paraíba e dos demais estados pleiteantes apoiamos a obra que favorece o desenvolvimento de nossas regiões do semiárido, assoladas pelas estiagens inclementes. Quem tem sede apoia a obra! Peço que o caro irmão escute a voz do Espírito do Senhor que fala pelo clamor do povo sedento de água, de amor, de justiça e de paz. (PAGOTTO, 2007).



Em compensação, também foi imediato o apoio de movimentos sociais, do povo e de importantes setores eclesiais. A Prelazia de São Félix do Araguaia, por exemplo, agradeceu “seu testemunho profético” afirmou que “a sua luta é nossa luta, o seu São Francisco é nosso Araguaia.” (VIAN, 2008, p. 174). A diretoria do Conselho Nacional de Igrejas Cristãs do Brasil (CONIC), considerou que “o ato extremo de Dom Frei Luiz supera o campo puramente político e se situa na dimensão simbólica e religiosa”. “Pode parecer uma chantagem para membros do governo, mas é de acordo com a mais autêntica tradição cristã pontilhada de mártires”. (VIAN, 2008, p. 157). Também o bispo primaz da Igreja Episcopal Anglicana do Brasil, expressou solidariedade a D. Cappio e solicitou ao presidente da República que parasse as obras. Referia-se a D. Cappio como “profeta, místico e pastor muito estimado por nossa Igreja, ora em jejum e orações pela revitalização do Rio São Francisco, e em protesto pelo início do projeto de transposição das águas de sua bacia hidrográfica” (VIAN, 2008, p. 159).

Estando D. Cappio em seu 13º dia de jejum, foi realizado um ato ecumênico em Sobradinho com cerca de cinco mil pessoas de caravanas de Pernambuco, Alagoas, Sergipe e Bahia. Os manifestantes criticavam o projeto da transposição não só por provocar forte impacto ambiental quanto por beneficiar apenas empresários e a população com maior poder aquisitivo. Esse descontentamento era reforçado por quem havia apoiado Lula mas via seu governo como desserviço às causas populares. Entre os muitos textos publicados, destaca-se o do teólogo e agente de pastoral indigenista Paulo Suess: “Luiz Cappio, por que vieste incomodar-nos?”:



Quem começa uma greve de fome, que é um instrumento de luta da não-violência, não sabe como vai terminar. O objetivo não é “ganhar” a luta. Quem ganha são os outros. O objetivo é fazer avançar uma causa. Com visibilidade de sua figura quase invisível, Frei Cappio fez avançar a causa dos ribeirinhos, dos povos indígenas e dos quilombolas do Rio São Francisco. Ao partilhar simbolicamente a austeridade de sua vida e lutar por água para os sedentos, Luiz Cappio se tornou ícone de esperança e sinal de justiça maior. Através do silêncio, da oração e do jejum na Igrejinha de São Francisco, em Sobradinho (BA), ele nos motivou novamente a acreditar na presença de um Deus que se despojou para caber ao lado dos pequenos. Vivemos desses pobres sinais que reforçam nossas lutas, das Romarias da Terra, do Grito, do jejum e da oração, da mística nos assentamentos do MST, das celebrações dos nossos mártires, da eucaristia (VIAN, 2008, p. 115).



Já a CNBB só veio a manifestar-se publicamente em 12 de dezembro, em favor do colega de episcopado cujo jejum e a oração “são motivados por seu espírito de pastor que ama seu povo” e que sua "atitude revela respeito à dignidade da pessoa e da criação e sua convicção de que o ser humano é capaz de conviver em harmonia e respeito com o meio-ambiente.” (VIAN, 2008, p. 54).

No Vaticano, porém, o segundo jejum encontrou ressonância muito desfavorável. No dia 13 de dezembro o Núncio Apostólico reafirmou ser “necessário conservar a vida, dom de Deus, e a integridade da saúde”. Por isso, colocar “em risco a própria sobrevivência, não é um meio aceitável e contradiz os princípios cristãos. (VIAN, 2008, p. 64).

No dia 19 de dezembro, ao saber que o Supremo Tribunal Federal havia se pronunciado a favor da transposição, D. Cappio, já debilitado, desmaiou. Duas horas depois foi internado, em estado inconsciente, na Unidade de Terapia Intensiva do Hospital Memorial de Petrolina. Na dia seguinte deixou a UTI e foi para um apartamento. Depois de 24 dias, a pedido dos movimentos sociais e de seus familiares, encerrou o jejum e concelebrou a missa na mesma Capela de São Francisco, com a presença de vários padres e dois bispos. Em carta aberta, referiu-se a “uma de nossas grandes alegrias neste período foi ter visto o povo se levantando e reacendendo em seu coração a consciência da força da união”. Assim explica ele sua decisão:



Depois desses 24 dias encerro meu jejum, mas não a minha luta que é também de vocês, que é nossa. Precisamos ampliar o debate, espalhar a informação verdadeira, fazer crescer nossa mobilização. Até derrotarmos este projeto de morte e conquistarmos o verdadeiro desenvolvimento para o semiárido e o São Francisco. É por vocês, que lutaram comigo e trilham o mesmo caminho, que eu encerro meu jejum. Sei que conto com vocês e vocês contam comigo para continuarmos nossa batalha para que “todos tenham vida e tenham vida em abundância”. (VIAN, 2008, p. 73).



Embora não tenha alcançado o objetivo de suspender as obras da transposição, a greve de fome obteve resultados políticos importantes. No dizer de Frei Gilvander Moreira, agente de pastoral comprometido com as lutas pela terra e pela ecologia, aquele gesto profético “tocou feridas profundas, encobertas por discursos fáceis, palavras jogadas ao vento. D. Cappio retomou uma modalidade de luta assentada sobre a fina flor da tradição cristã: jejum e oração.” Ele elenca dez conquistas importantes para os movimentos sociais, sendo a maior delas ter “D. Cappio vivo entre nós”, como “profeta no meio do povo para encorajar a luta dos pequenos” e “denunciar arbitrariedades e desumanidades dos quatro poderes que, travestidos de Estado de Direito, insistem em imperar sobre os pobres e sobre o ambiente natural”. (MOREIRA, 2008, p. 131).

Em suma, a atitude do bispo provocou mobilização da sociedade e favoreceu uma concepção de desenvolvimento capaz de harmonizar sociedade e ecologia conforme preconiza a Carta da Terra3, em oposição ao sistema econômico regido pela lógica do mercado. Sua estratégia foi insuficiente para barrar o projeto de transposição, mas levou a mudanças de consciência nos povos indígenas, movimentos populares, intelectuais, técnicos e artistas, que assumiram papel mais ativo em defesa do rio e das comunidades ribeirinhas.

Diante dos fatos e pronunciamentos acima expostos, cabe agora a reflexão sobre o caráter do gesto. Para D. Cappio, seu jejum foi o derradeiro recurso para pressionar o governo a abrir a discussão com a sociedade e os movimentos sociais da região sobre a revitalização da bacia são-franciscana e as alternativas à transposição. Ao recorrer a uma arma clássica da estratégia de não-violência, ele conseguiu levar muitas pessoas a enfrentarem o poder do Estado. Seu gesto tornou-se, portanto, uma resposta à atitude autoritária do governo que sonegou informações e iludiu a sociedade com a promessa de dar solução definitiva à seca no semiárido. Mas o propósito deste artigo não é avaliar os resultados desse movimento, e sim discutir seu caráter simbólico. Poderia ser adequadamente definido como um gesto profético, ou trata-se do uso indevido da simbologia religiosa para fins políticos?

Profecia ou utilização política da religião?

Fica evidente nas citações em favor de D. Cappio a afirmação do caráter profético do seu gesto. Quem dele discordou, porém, negou o validade religiosa de seu protesto político. Esta é a questão que merece aqui ser aprofundada.

Desde a primeira greve a Santa Sé de fome desqualificou a atitude de D. Cappio, por não se conformar aos princípios cristãos. A carta do cardeal Re, já citada, falava do “grave dever de recordar-lhe que os princípios da moral cristã não permitem que leve adiante a sua decisão” pois “não é esse o modo aceitável para exprimir a sua solidariedade e sua doação pelo Povo de Deus”. No segundo período de protesto, o núncio apostólico pede a D.Itamar Vian, arcebispo de Feira de Santana, que entregue pessoalmente uma carta intimando-o à submeter D. Cappio à disciplina canônica. Ao fazê-lo, pede que ele tenha “a bondade de explicar a Dom Cappio que a decisão sobre o projeto em questão é da competência da Autoridade Civil”. (VIAN, 2008, p. 63).

Argumentação semelhante pode ser encontrada no artigo com o sugestivo título “Uma prece a São Francisco: solidários com os pobres e livres dos fundamentalismos religiosos e ecológicos”, publicado por Luiz Alberto G. de Sousa, intelectual cujo nome está associado à Teologia da Libertação desde seus primórdios. Assim conclui o texto:



Meu carinho por D. Cappio me obriga a posicionar-me fortemente contra sua instrumentalização, abastardando um gesto nobre, mas de uma radicalidade absolutizada, capturada por intencionalidades mais que discutíveis. Retome-se um diálogo adulto, de parte a parte, governo e bispo, mas fica difícil se este último se encerra na inflexibilidade de um absoluto não dialógico. Ao mesmo tempo, há que denunciar em voz alta o uso indevido de um testemunho para destruir um processo histórico brasileiro que caminha, certamente com falhas e dificuldades como todo processo histórico. A não ser que queiramos a volta revanchista de um tucanato sem compromissos com o país e com seus pobres; ou então entregar-nos aos devaneios vagos de um idealismo mal definido e jogando esperanças para um amanhã sem rosto nem data, fora de processos reais. Não é possível deixar um sinal escorregar em contra-sinal, capturado por intenções escusas. (...) Seria um triste fim para um gesto que começou desprendido e generoso. Francisco de Assis ajude seu irmão e filho Luiz a um discernimento concreto de real fidelidade com os mais variados pobres e excluídos deste país e o livre de um clima contaminado por políticos mal-intencionados ou por um moralismo cego, que é a própria negação de uma ética inserida numa história concreta da libertação. (SOUZA, 2007).



O caráter profético do “jejum e oração” está portanto em questão. Ele depende, é claro, da perspectiva teórica adotada. Na perspectiva da sociologia da religião de inspiração weberiana o gesto de D. Cappio parece ilustrar perfeitamente a definição de profecia. É o que desejamos demonstrar em seguida.



Trabalho profético: transformar “greve de fome” em “jejum e oração”

Embora Pierre Bourdieu, criador da noção de trabalho religioso, tenha se ocupado mais do poder do profeta do que do trabalho profético propriamente dito, cremos ser fiéis a sua teoria sociológica ao defini-lo como a capacidade de responder por meio de práticas ou discursos revestidos de sagrado a novas necessidades sociais carentes de sentido4. Essa noção deriva, é evidente, da teoria weberiana da religião. Em sua obra de sistematização da Sociologia ele dedica um capítulo ao tipo-ideal do profeta como “portador individual do carisma, que em virtude de sua missão proclama uma doutrina religiosa ou um mandamento divino” (WEBER, 1991, p. 303). Importante observar que para o Autor o traço mais importante a distingui-lo do tipo-ideal sacerdote é o caráter pessoal do seu carisma. Por isso, ao utilizarmos a noção de trabalho profético como chave de leitura sociológica do protesto de D. Cappio contra a transposição das águas do rio São Francisco, devemos ter presentes esses três elementos definidores: (i) é uma forma de trabalho religioso, (ii) opõe-se ao trabalho sacerdotal e (iii) requer um carisma de ordem pessoal, individual.

Se todo trabalho religioso consiste, em última análise, a produzir sentido para a existência por meio da produção e reprodução de discursos e rituais revestidos de sacralidade, o específico ao trabalho profético é produzir sentido para uma realidade que, por ser nova, é (ainda) carente de sentido. Este é o caso da luta contra o projeto de transposição. A novidade reside na nova percepção da água, do ambiente e da Terra como entidades vivas e sujeitas de Direitos. No Brasil, Leonardo Boff foi um dos pioneiros nessa percepção. Em 1995, ao publicar Dignitas Terrae: Ecologia, grito da Terra, grito dos Pobres, assentou as bases teóricas para uma Teologia da Terra na perspectiva da Teologia da Libertação, marcando assim um novo patamar em sua atividade tanto ao buscar um novo paradigma de pensamento (BAPTISTA: 2011), quanto ao colaborar na redação e na divulgação da Carta da Terra. (BOFF: 2009)

Essa nova percepção da Terra como ser vivo e sujeito de Direitos ficaria, contudo, restrita aos círculos de estudiosos-militantes da Ecologia, se não fosse traduzida em termos de ideia-força5: ideia portadora de valor e por isso capaz de mobilizar vontades. Aqui situa-se o trabalho profético de D. Cappio ao fazer da “greve de fome” tempo “jejum e oração”. Essa transfiguração, que prepara o terreno para uma linguagem política assertiva e gera as condições subjetivas para a mobilização social, tem por base o princípio ético da legitimidade de “entregar minha vida pela vida do Rio São Francisco e de seu povo”.

Ao formular esse propósito, D. Cappio provoca enorme constrangimento na área propriamente sacerdotal da hierarquia eclesiástica. Como a sacudir pilares de uma estrutura milenar, aquele bispo franciscano, discípulo de um teólogo marginalizado, é chamado à obediência pelo cardeal prefeito da Congregação para os Bispos, de Roma. Não está em questão a “greve de fome” ou o “jejum e oração” (é interessante notar que a carta citada usa ambas expressões), mas sim a transgressão aos princípios cristãos referentes ao “sagrado dom da vida humana”. Como pode um católico – mormente sendo bispo – ousar oferecer sua vida pela vida de um curso d’água? Essa equivalência entre vida humana e vida da Terra é simplesmente incabível no sistema religioso em vigor no pensamento sacerdotal.

Cabe aqui esclarecer a possível objeção de que, se para M. Weber e P. Bourdieu o tipo-ideal do profeta é radicalmente diferente do sacerdote, como pode um bispo (e portanto sacerdote em alto grau) ser tratado como profeta? A resposta reside no fato da metodologia weberiana trabalhar com tipos-ideais, e não atores sociais históricos6. No caso em questão, não se contrapõem profeta e sacerdote, e sim trabalho sacerdotal e trabalho profético, independentemente dos atores sociais que os realizam. D. Cappio realiza um trabalho religioso na medida em que confere sentido religioso à luta contra a transposição. Essa ação pode ser definida como trabalho profético porque desperta forças sociais até então imobilizadas pelo respaldo técnico à ideia-força da transposição como solução definitiva para a seca do Nordeste. Em outras palavras, o gesto-discurso de oferecer a própria vida em defesa da vida do rio são Francisco responde à demanda já presente porém em estado latente, de uma ideia-força alternativa. Nas palavras lapidares de P. Bourdieu:



É pela capacidade de realizar, através de sua pessoa e de seu discurso com palavras exemplares, o encontro de um significante e de um significado que lhe era preexistente mas somente em estado potencial e implícito, que o profeta reúne as condições para mobilizar os grupos e as classes que reconhecem sua linguagem porque nele se reconhecem. (BOURDIEU, 2005 p. 75).



Assim chegamos ao ponto final desta análise: o caráter individual do carisma profético, sobre o qual tanto insiste M. Weber. De fato, para legitimar sua atitude D. Cappio não apela para sua condição de bispo, mas para sua biografia e na sua missão como franciscano. Ao transformar a arma política da “greve de fome” em gesto ritual de “jejum e oração”, ele recorre a um símbolo forte do imaginário religioso brasileiro: o hábito de frade. Ao abdicar das vestimentas episcopais em favor do burel franciscano, D. Cappio será logo associado à figura dos missionários que desde o tempo colonial até Frei Damião, percorriam os sertões nordestinos como “conselheiros” muito estimados pelo povo. Ao beber água do rio fazendo concha com as mãos, reproduz o hábito da população ribeirinha, como a dizer que não temia ser contaminado pela “irmã água”. Enfim, ao receber todas as pessoas que o procuravam – desde seus diocesanos e vizinhos até emissários do governo federal e da Santa Sé – D. Cappio criava laços de empatia que ajudavam a dar-lhe a aura de santidade. Tudo isso revestiu a mensagem profética de equivalência de valor entre a vida humana e a vida da Terra de sentido sacral. E assim tornou-se ideia-força capaz de mobilizar muita gente.

M. Weber certamente veria na força da pessoa de D. Cappio um exemplo típico do carisma7. Para fins descritivos, nada mais acertado; para fins explicativos, porém, soa como apelo a deus ex-machina. Foi de sua experiência de vida no sertão do São Francisco que ele hauriu a capacidade de mobilizar pessoas e grupos por meio de seu exemplo e sua fala. E P. Bourdieu, mais uma vez, oferece a explicação sociológica do êxito do profeta:



O profeta traz ao nível do discurso ou da conduta exemplar, representações, sentimentos e aspirações que já existiam antes dele embora de modo implícito, (grifo nosso) ou inconsciente. Em suma, realiza através de seu discurso e de sua pessoa, como falas exemplares, o encontro de um significante e de um significado preexistentes [...]. É por isso que o profeta [...] pode agir como uma força organizadora e mobilizadora. (BOURDIEU, 2005, p. 92-93).



Nessa perspectiva, trata-se de perceber em D. Cappio a consonância de sentimentos com vários setores sociais que, por uma ou outra razão, percebem o projeto de transposição das águas do São Francisco como ameaça a suas condições de existência. O destaque de D. Cappio foi sua capacidade de dar novo significado, religioso, ao clássico significante político da greve de fome. Foi destarte produzido um sentido religioso para as lutas ecológicas e ambientais, sentido capaz de mobilizar energias coletivas rumo a outra política ambiental. A sensação de desconforto com a realidade vivida e o anseio pela preservação do rio e dos povos ribeirinhos confluíram para um movimento social que teve como bandeira a vida de D. Cappio, a revitalização do rio São Francisco e a oposição à transposição de suas águas.

1 Doutor em Sociologia. Professor no PPG em Ciências da Religião da PUC Minas.
E-mail: [email protected]

2 Mestre em Ciências da Religião pela PUC-Minas. E-mail: [email protected]

1 O “Projeto de Integração do Rio São Francisco com as Bacias Hidrográficas do Nordeste Setentrional” prevê a construção de dois canais com 700 quilômetros de extensão para levar parte das águas do rio São Francisco a regiões do Ceará, Rio Grande do Norte e Paraíba (eixo norte) e Pernambuco e Paraíba (eixo Leste).

2 Essa farta documentação foi reunida por D. Itamar Vian (VIAN: 2008) e por frei Gilvander Luís Moreira (MOREIRA: 2008). As citações foram tiradas dessas obras, salvo quando referida outra fonte.

3 A Carta da Terra é uma declaração de princípios para a construção de uma “sociedade global justa, sustentável e pacífica” publicada em março de 2000. Sua elaboração envolveu a participação de mais de 4.500 organizações, incluindo vários organismos governamentais e organizações internacionais. O texto completo encontra-se disponível na home page da “Carta da terra em ação”.

4 Referimo-nos a dois textos publicados em BOURDIEU (1974): “Gênese e estrutura do campo religioso” e “Uma interpretação da Teoria da Religião de Max Weber”. Ao utilizarmos aqui a noção de trabalho religioso, partimos da apreciação crítica de OLIVEIRA (2007) sem necessariamente endossar toda a Teoria do Campo Religioso.

5 Seguindo SOUZA (1987), usamos a categoria ideia-força – ideia carregada de valor e por isso capaz de conferir sentido ao agir humano – para escapar da ambivalência contida na categoria de ideologia, que pode ser entendida também como mera justificativa dos interesses de um grupo ou classe.

6 Ao expor sua concepção de tipos-ideais, Weber explica que eles são construções puramente intelectuais (diríamos hoje que são modelos) abstraídos do real para ajudar a compreender as ações dos atores históricos. (WEBER: 1995).

7 Weber (1991, p. 280) define o carisma como dom inato à pessoa, mas despertado, estimulado e reconhecido nela devido a alguma situação de crise social ou de fatos extracotidianos. É P. Bourdieu que diz ser necessário desvendar o fundamento social do carisma para evitar uma explicação não social para o fato social da autoridade exercida pelo profeta.



REFERÊNCIAS

BAPTISTA, Paulo Agostinho N. Libertação e ecologia: a teologia teoantropocósmica de Leonardo Boff. São Paulo: Paulinas, 2011.

BOFF, Leonardo. A Carta da Terra e a consciência planetária: um olhar “de dentro”. In: OLIVEIRA, Pedro A. Ribeiro de; SOUZA, José Carlos Aguiar de (Orgs): Consciência planetária e religião: desafios para o século XXI. São Paulo: Paulinas, 2009. p. 15-27.



____________.Dignitas Terrae - Ecologia: grito da terra, grito dos pobres. São Paulo: Ática, 1995.



BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. 6. ed. São Paulo: Perspectiva, 2005.

CAPPIO, Luiz Flávio et al. Rio São Francisco uma caminhada entre vida e morte, 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2000.

MOREIRA, Gilvander Luís (Org.): dom Cappio: rio e povo. São Leopoldo, Centro de Estudos Bíblicos – CEBI / Comissão Pastoral da Terra – CPT, 2008.

OLIVEIRA, Pedro A. Ribeiro de: A teoria do trabalho religioso em Pierre Bourdieu. In: TEIXEIRA, Faustino (Org.). Sociologia da religião. Petrópolis: Vozes, 2007.

SOUZA Luiz Alberto G.: “A política e os cristãos”, in VV. AA.: Cristãos: como fazer política; Vozes, Petrópolis, 1987.

VIAN, dom Itamar (Org.). Uma vida pela vida: o jejum de dom Luiz Cappio em defesa do rio São Francisco e de seu povo. Porto Alegre: ESTEF, 2008.

WEBER, Max: Economia e sociedade. 4. ed. Brasília: UNB, 1991.

____________. Metodologia das ciências sociais. São Paulo: Cortez, 1995.



CITAÇÕES ELETRÔNICAS

LIMA. Geddel Vieira, Sem boa causa não há mártir. Artigo escrito em 2007. Disponível em: <http://www.integracao.gov.br/saofrancisco/noticias/noticia.asp?id= 2995>. Acesso em: 04 set. 2010.

PAGOTTO, Aldo. Nota carta a dom Cappio sobre a transposição, de 28/11/2007. Comissão Pastoral da Terra (CPT). Disponível em

<http://www.cptpe.org.br/modules.php?name= News&file=article&sid=73>. Acesso em: 04 jul. 2010.

SOUSA, Luiz Alberto Gómez de: Uma prece a São Francisco: solidários com os pobres e livres dos fundamentalismos religiosos e ecológicos:

http://www.ihu.unisinos.br/noticias/noticias-anteriores/11353-uma-prece-a-sao-francisco-solidarios-com-os-pobres-e-livres-dos-fundamentalismos-religiosos-e-ecologicos-artigo-de-luiz-alberto-gomez-de-souza. Acesso em : 22 mai. 2012.


TEOLOGIA DEL CUERPO Y BIOETICA 5º14 VOCACION Y VOCACIONES
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